Eulália Bety Colman foi a matriarca de uma longa família, a qual ela batalhou tanto para criar, proteger e desenvolver. Foi mãe de 3 filhos, avó de 5 netos, vendo grande parte deles crescerem e terem filhos, seus 7 bisnetos. Nasceu no pobre interior do Paraguai, sobreviveu a uma guerra civil quando ainda era apenas uma criança, arriscou a vida em busca de uma melhoria em um país desconhecido, formou uma família e zelou por ela até o fim.
Eulália era de uma senhora robusta, cabelos longos, negros e lisos com vários fios brancos; tinha altura mediana e costumava usar seus vestidos floridos, feitos por ela mesma. Era vista sempre sentada em uma cadeira na calçada de sua casa, ao lado de seu pé de manga, tomando tereré e conversando com qualquer um que passasse por ali, sejam vizinhos conhecidos, familiares que moravam com ela ou até mesmo desconhecidos, com aquele seu sotaque carregado de quem misturava o português, espanhol e guarani.

Para os familiares do Paraguai, era conhecida por “Bety”. No Brasil, ela teve vários nomes: mãe, avó; Vó Morena, para os bisnetos; e “Dona Morena” para aqueles que residiam Santa Fé, um dos bairros mais antigos de Campo Grande. Mas, você deve estar se perguntando: por quê esses apelidos com o adjetivo “Morena”? Faziam jus ao tom de sua pele morena, um pouco amarronzada e escurecida naturalmente. Esse apelido carinhoso – “Dona Morena” – lhe foi dado por Dona Mafalda, logo após se mudar para Santa Fé. Mafalda foi uma de suas mais antigas vizinhas.
Eulália Colman fez parte da segunda leva de imigrantes paraguaios que se mudaram para o Brasil, entre as décadas de 1950 e 1960. O Brasil, naquele então, nos “Anos Dourados” do governo de Juscelino Kubitschek, se criou uma imagem nacional no país hermano de que era um lugar para “ganhar dinheiro”, ao menos é o que diziam a Eulália. Chegou ao Brasil, em 1958, com algumas malas de roupas e seus dois filhos, e o seu segundo marido, Pedro. Manteve-se por um tempo em Ponta Porã, na fronteira, e se mudou para Campo Grande, em 1970.
Passado no Paraguai
Eulália Colman nasceu no dia 11 de novembro de 1936, na cidade de Villa Hayes, um “pueblo” a 31 km da capital do Paraguai, Asunción. Sua família era humilde, simples e de poucos recursos, sendo a segunda maior de 12 irmãos, tinha que ajudar a cuidar dos irmãos menores porque seus pais passavam o dia inteiro trabalhando, tendo apenas a oportunidade de frequentar o ensino primário. Uma das irmãs ainda viva de Eulália, Rovina Colman, se recorda de sua boa e agradável relação com ela, sem muitas brigas e de muito respeito. Para ela, sua irmã era muito tranquila.
Ela nunca brigou comigo. Quando me dizia as coisas, eu ficava quieta e ela a mesma coisa
Rovina Colman

Aos 9 anos de idade, Eulália presenciou um dos momentos mais difíceis da história do Paraguai: a Guerra Civil de 1947. O confronto durou apenas, mas terríveis, 5 meses, de março a agosto, com direito a bombardeios por todo o país, tiros, perseguições e um total de 20 mil mortos. A primeira filha de Eulália, Gorjelina, conta que sua mãe comentou sobre ter sido colocada com seus irmãos em uma espécie de “fosso” raso para serem protegidos de bombardeios e tiros dos aviões.
Ela disse que acabou com muita coisa por lá
Gorjelina Amarilla

Como de costume na época, se casou muito cedo, aos 17 anos, com seu primeiro marido, Paulo, que atualmente tem 86 anos e mora em Campo Grande (MS). Aos 19, Eulália engravidou de sua primeira filha, Gorjelina e, não muito tempo depois, do seu segundo filho, Lula. A irmã de Eulália, Rovina, lembra que Paulo não era um marido ideal e tampouco um pai presente. Paulo gostava muito da “farra”, do álcool, de jogar baralho, fazer apostas e não era muito trabalhador. Gorgelina fala que seu pai sumia não apenas por uma noite, mas por dias.
Ele saía e ficava dois, três dias
Gorjelina Amarilla
Tudo que Dona Morena tinha de trabalhadora e responsável, Paulo tinha de inconsequente. O estilo de vida que Paulo levava, segundo sua irmã, Rovina, foi também uma das razões para que ela fosse influenciada e apoiada por sua família para que deixasse o Paraguai e tentasse uma vida nova no Brasil, além da pobreza e complicada realidade de se viver em um país conhecido por ser um dos menos desenvolvidos da América do Sul.
Sendo assim, em 1958, depois de toda sua família perceber que Paulo não era um bom marido, lhe aconselhou fugir com Pedro de La Cruz Britez, seu primeiro namorado que ainda era apaixonado por ela. Foi assim que Eulália e seus dois filhos pequenos viajaram para o Brasil. Eles chegaram em Ponta Porã, com muita força e esperança de conquistar uma vida melhor.
A família sofreu, mas nós a apoiamos. Era nossa irmã
Rovina Colman
Chegada ao Brasil
Na fronteira, Gorjelina lembra que sua mãe começou a trabalhar em uma fazenda cafeeira, carpindo mato e colhendo café. Esse foi o seu trabalho durante toda a década de 1960, até que decidiu, mais uma vez, tentar algo novo. Dona Morena e sua família se mudaram para Campo Grande, no começo dos anos de 1970. Era um momento que a cidade estava dando seus primeiros resquícios de desenvolvimento e alargamento. Dona Morena acreditava que, segundo sua filha, ganharia um pouco mais de dinheiro aqui, trabalhando para um frigorífico.
Em Campo Grande, a família alugou uma casa de um tal “japonês”, segundo Leonarda Souza Mendonça. Leonarda foi também uma das velhas vizinhas de Dona Morena. Ela diz que Eulália morava perto de sua avó, Simiona Bassan, tornando-se grandes amigas. Não muito tempo depois, Dona Morena finalmente conseguiu comprar seu próprio terreno e construiu sua casa própria.
Sua vizinha, Leonarda, fala dos bons momentos de sua infância “maravilhosa” que viveu ao frequentar sua casa. Ela diz que a “Tia Morena” era alguém muito conselheira, lhe ensinou matemática básica, a ler e acompanhou todo o seu processo de crescimento pessoal.
Ela foi praticamente uma mãe para mim
Leonarda Souza Mendonça
A rotina de Eulália, segundo Gorjelina, era de trabalho constante no frigorífico, até mesmo em períodos noturnos, pelo menos enquanto jovem. Dona Morena engravidou pela terceira e última vez de Luiz Carlos Britez, seu único filho com Pedro. Apesar do seu segundo marido não ser pai biológico de seus primeiros dois filhos, foi ele quem a ajudou a criá-los.
Perda de um filho
Eulália passou por muita coisa, mas nada se compara ao dia que perdeu seu segundo filho mais velho, Lula, em 1979, ainda jovem. Lula tinha 21 anos quando perdeu a vida em uma briga de bar, ao se envolver para proteger um amigo e acabou esfaqueado no estômago.
Gorjelina explica que sua mãe ficou desorientada, pois era muito apegada, carinhosa e cuidadosa com seus três filhos. Ela lembra que sua mãe ia duas vezes por semana ao cemitério visitar o túmulo de seu irmão, por conta da saudade. Lula tinha um filho pequeno, Alexandre, o qual Dona Eulália tomou para si a sua criação.
Não somente com Alexandre, mas com todas as suas outras três netas: Beatriz, Miriam e Viviane, ela tinha muito amor e carinho. Gorjelina conta que sua mãe a ajudava muito na criação das netas, revezando no cuidado e atenção.

Minha mãe era tudo para a Beatriz, que era doente demais. Quantas vezes a gente trabalhava de noite, aí ela voltava pra descansar e nessa ficava comigo lá em casa, aí cuidava um pouco da Beatriz pra eu poder dormir e assim fizemos com todas as minhas filhas
Gorjelina Amarilla

Avó e Bisavó
Viviane Oliveira, de 40 anos, é a quarta neta de Eulália, uma das três filhas de Gorjelina. Viviane vê a avó como exemplo, diante de tudo que ela passou e das dificuldades que superou. Ela lembra sempre de acompanhar a avó ao posto de saúde e tomar garapa antes dos exames de pressão, assim, Dona Eulália seria liberada mais rápido por conta de sua pressão baixa. Eulália não era muito de médicos ou medicamentos comuns. Tinha preferência “remédios naturais”, plantas, ervas e etc.
Sua terceira neta explica que tinham uma relação muito sincera, às vezes brigavam, tinham inúmeras conversas sobre absolutamente tudo. Com os bisnetos, Dona Eulália costumava mimá-los demais, algo que Viviane não aprovava muito.

Tudo que eles faziam era certo, podiam fazer tudo que quisessem, mas a gente tava sempre errada
Viviane Oliveira
Para Mariana, a primeira bisneta, sua bisavó era alguém difícil de decifrar. “Ela era uma caixinha surpresa. Cada hora falava uma coisa. Ao mesmo tempo que podia te dar uma fala de carinho, podia te dar uma patada”. Ela explica que conversava muito sobre o seu dia a dia com sua bisavó e fofocas do bairro. Dona Morena sabia de tudo que acontecia sem sair de casa. Todos chegavam nela e lhe contavam o que estava acontecendo. “O povo chegava lá e contavam as suas histórias. Ela sabia da vida de todo mundo”, disse.

Eulália Colman faleceu em 2019, aos 83 anos, por um problema de saúde. Sua neta, Viviane, confessa que a saudade é grande. “A morte dela foi muito repentina. Ninguém esperava. Era ela quem ditava as regras aqui. Sem ela aqui, a gente se sente até meio perdido”.