Isaura Alcântara, conhecida pelo apelido de Tia Sirika, é uma grande pajé da região da Terra Indígena Buriti, no município de Dois Irmãos do Buriti. Uma mulher de grande sabedoria ancestral, é vaidosa, gosta de estar sempre bem arrumada, tendo como cor predileta o vermelho. Sempre verdadeira, não mede esforços para falar a verdade, ainda preserva a educação dos seus ancestrais, e se sente ofendida quando alguém passa em sua frente e não pede bênçãos.
Sempre positiva no que fala, Tia Sirika é uma mulher brava assim como grandes guerreiras, não tem medo de ninguém, enfrenta qualquer um, por esse motivo ela é uma mulher temida. No entanto, também tem um grande coração, ajuda quem a procura em busca de cura a qualquer horário do dia. Pois, ama o que faz.
Além da espiritualidade Terena, Isaura conta que também trabalha com a umbanda, mas afirma que o que ela mais gosta é de cantar em sua língua e chacoalhar o itaka (cabaça), ela diz que tem mais sabedoria com os espíritos da natureza.
“Ela é a única koixomuneti que ainda faz os rituais aqui na aldeia”.
Essa fala é de uma anciã da aldeia Buriti, a benzedeira Adelina Figueiredo. Ela conta que no passado existiam muitos xamãs, com grandes poderes que impressionavam. Aliás, seu pai também era pajé, e dos mais poderosos, e mais respeitado na região da Terra Indígena Buriti. Atualmente, segundo Adelina, a pajé Isaura é a única que faz os rituais como eram feitos no passado,“a única que sobrou dos antigos pajés”.
Sempre que ouve a Isaura cantar ela diz que se emociona, porque ela lembra dos seus ancestrais, de sua família e principalmente do seu pai, “ ela canta uns cantos que meu pai cantava”. Adelina afirma que sempre incentiva seus netos a irem no ritual que é feito anualmente pela pajé Isaura, para que sua cultura não acabe, para que eles possam contar aos seus netos a vivência do ritual. “Eu mando meus netos irem para assistir, para não acabar a nossa cultura, eles terão que contar para seus netos”.
Na opinião de Adelina, Tia Sirika “é importante, porque sem ela não tem outro pajé para fazer o ritual do oheokoti. O ritual é muito forte, é através dele que a nossa aldeia é limpa de espíritos maus e a nossa roça vai para frente”. Adelina tem o dom para ser uma pajé também, mas ela não aceita, ela só ficou com o dom de benzer crianças.
Como se tornou Pajé
Koxomuneti ou xamã são palavras que também são usadas para definir pajé. Perguntei à Tia Sirika como foi que se tornou pajé, e ela não se lembra muito bem o ano, nem a idade, mas diz quando ela era bem moça, pois ela já sabia que tinha um dom espiritual. Ela foi em um pajé, mas ele não quis abrir o caminho da espiritualidade para ela, então precisava de um mentor, um pajé mais velho, pois o mesmo não quis ajudá-la, afirmando que ela se tornaria poderosa, e poderia matá-lo.
Ela nos conta de cinco pajés que a chamou em uns dos rituais, perguntaram a ela se era isso mesmo que ela queria, ela disse que sim, pois sabia que os espíritos não iam deixá-la em paz. No mesmo dia os pajés deram a abertura para ela do mundo espiritual, e assim seus guias espirituais vieram à terra. Ela conta que ganhou o seu itaka (cabaça) e seu kipahi (tufo de penas de ema) dos pajés antigos.
Anos depois uns dos pajés que estava no dia, conhecida com tia Juliana, fez uma troca com ela, Juliana deu seu itaka para Isaura, e Isaura deu seu itaka para juliana. Segundo Isaura, dias antes de falecer, tia Juliana disse “fique com meu itaka, eu te dou toda minha força” e elas fizeram essa troca. Até hoje, ela permanece com o itaka da antiga xamã. Isaura nos contou que não tem só um itaka, ela tem dois, o seu segundo itaka também foi presente de uns dos pajés que estava no dia de sua iniciação, ele era seu compadre, conhecido por xiru, Darci Norato.
O ritual
Em seus rituais ela usa os dois itaka dos antigos xamãs. Em uns dos seus rituais pude presenciar o uso dos dois itaka. Isaura começa se pintando com tinta de urucum, carvão e cinza, depois coloca seus adereços como cocar e colares. Ao ficar pronta, ela diz que começam a aparecer cobras de todas as cores de tamanhos, que só ela pode vê-las. Neste momento, ela começa a chacoalhar o itaka sem o canto, logo entra em transe. Em seguida, ela começa os cantos, que duram horas, tem momentos que ela pára e dá as bênçãos às pessoas que ali se encontram. Isaura afirma que ela não era a única de sua família que era pajé, a sua irmã Naurelina Alcântara, conhecida como tia Senhorinha, também era.
Evangélicos
No entanto, muitos pastores já tentaram converter a pajé ao cristianismo, mas ela afirma que nunca quis, porque nasceu assim e morrerá assim. “Primeiro de tudo eu sou indigena Terena, nasci assim e vou continuar fazendo os rituais até o dia que Deus lembrar de mim”. Segundo a xamã, ela está preparando o seu filho para continuar sua missão, pude presenciar a pajé dando seu itaka para seu filho chacoalhar. “Já curei muita gente, e ainda continuo curando” não só as pessoas das aldeias ao redor, mas as das cidades vizinha também.
Ela tem uma importância muito grande, porque é através dela que podemos buscar o fortalecimento
Indigena Terena, Juliene Fernandes, de 28 anos, é acadêmica de Pedagogia e neta da xamã Isaura. Ela conta uma situação marcante envolvendo a avó. “Quando eu era criança, eu e outras pessoas estávamos em roda. Era Semana Santa, Ritual do Oheokoti, me lembro muito bem quando começaram os trabalhos de pajelança dela, que ela faz todos os anos. No dia estava ela e um senhor que era chamado de Darci (em memória), eles começaram a chacoalhar os porungo (cabaça), todos ficamos quietos. Ela passou o penacho em todos que estavam ali no momento. Os dois pajés, que são minha avó e esse senhor, começaram a falar na língua Terena, do nada veio uma cobra, coisas que eu não acreditava. Eu tinha mais ou menos uns sete anos de idade, pois minha avó conversou com a cobra, ela disse que era para mostrar para algumas pessoas que estavam ali, que não acreditavam no ritual. Esse foi uns dos momentos que vou levar para minha vida, algo que posso contar para os meus netos, algo que eu vivenciei”.
A acadêmica Terena diz que sua avó é de suma importância para a sua aldeia porque é através dela que eles buscam o fortalecimento, através das ervas medicinais que, para muitos, são desconhecidas, que curam muitas doenças.“Minha avó por ser uma benzedeira, busco compreender melhor seu trabalho, ela é uma referência muito grande por ser uma pajé feminina da nossa aldeia Buriti”. Juliene afirma que sempre vai aos rituais de sua avó, “é um momento em que os seres da natureza são convocados, um momento único onde o corpo é protegido por eles”.
Estava com perseguição espiritual, ela que me curou
Andiara Alcantara, jovem Terena moradora da aldeia Buriti, tem 16 anos. A Terena conta que não conseguia dormir à noite. Sempre sentia que alguém a perseguia, sua mãe a levou na xamã e Isaura disse a ela que tinha um espírito com ela, e era para ela não andar tarde da noite, porque esse espírito começou a acompanhar ela em uma noite que ela saiu. “Tenho muita gratidão a ela”.
Andiara afirma que a xamã é de suma importância para comunidade porque tem coisas que o homem branco não compreende, e coisas que o médico não cura, como problemas espirituais. “Eu sempre vou nos rituais, eu como jovem da comunidade busco vivenciar minha cultura, eu vejo o ritual como uma aula cultural, onde vejo como meus ancestrais se curavam no passado, me sinto fortalecida depois do ritual que a pajé realiza, mesmo que não sei o que ela fala no seu canto, me traz uma paz, me sinto acolhida, renovada”.
Essa é nossa cultura Terena, ela é importante para nossa comunidade
Claudineia Alcantara Batista é neta de xamã Naurelinda (em memória) e irmã da xamã isaura. “Cresci na pajelança, fui criada por uma pajé, que é irmã da Isaura Alcantara, tenho ela como minha avó. Sempre vou nos rituais que ela conduz, eu choro, porque lembro da minha avó, que todo ano ela também fazia o ritual, lembro da minha infância. A tia Sirika faz o ritual que nem minha avó fazia. Já fui curada na pajelança, assim como outras pessoas da comunidade, porque nem tudo o homem branco consegue resolver. Eu vejo a nossa pajé como um grande mulher, de grande sabedoria, ela é um grande exemplo pra todos, ela por muitos anos vem lutando para que nossa cultura se mantenha viva, ela é uma grande referência, acho muito interessante que a escola da aldeia faz, leva os alunos para que ela possa contar as história do passado para eles”.
Segundo Claudineia, há coisas que o médico não cura, e a xamã cura, através dos remédios que são feitos manualmente, remédios que são extraídos da mata. Para ela, a xamã tem uma importância porque é nela que as pessoas recorrem quando não tem médico na aldeia e quando as pessoas não tem condição de ir ao hospital da cidade mais próxima. A moradora afirma que sempre vai aos rituais e sempre leva seus filhos e seus netos para assistir o trabalho xamânico. “Sempre levo meus netos e meus filhos no ritual para a tia Sirika benzer, para ela fechar o corpo deles”.