Um exemplo de livro reportagem fortíssimo no Brasil, Holocausto Brasileiro, escrito por Daniela Arbex, uma das jornalistas mais premiadas de sua geração, tendo mais de 20 prêmios nacionais e internacionais no currículo. O best-seller, Holocausto Brasileiro, foi premiado com o Jabuti e o Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e teve cerca de 300 mil exemplares vendidos, como se lê na capa mais recente da obra. Publicada pela editora Intrínseca, trata-se de um compilado de entrevistas, registros históricos pessoais e institucionais, que constroem uma indignação crescente, página a página.
Holocausto Brasileiro é um livro surpreendente em vários aspectos: primeiro, por tratar de uma tragédia desconhecida por grande parte da população brasileira; depois, por expor de maneira tão sólida e transparente a dimensão da tragédia em questão. Trata-se de 60 mil mortes, casos de pacientes de um hospital psiquiátrico que viveram em condições de miséria e terror na cidade de Barbacena, município de Minas Gerais, em um hospital psiquiátrico que internava quem fosse, por qualquer que fosse o motivo.
Configura-se como genocídio o “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso”. Este é o termo usado pela autora Daniela Arbex no decorrer da trama para tratar a realidade descrita em Barbacena. Inaugurado em 1903 e projetado para 200 pacientes, em 1930 o hospital contava com muito mais do que uma superlotação: havia 5 mil pessoas internadas. Os diagnósticos iam de timidez e “tristeza” – como consta em um dos prontuários expostos no livro – até uma gravidez mal explicada ou “bebedeira e descontrole nos negócios”. Qualquer coisa era motivo para que pais, mães, filhos e irmãos fossem enviados nos “trens de doido” em um caminho sem volta. No primeiro capítulo, podemos observar uma imagem da Estação Bias Fortes, por onde vinham os tais trens, apelidados de “trem de doido” pelo escritor Guimarães Rosa.

No conto “Socorô, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras estórias, lançado em 1962, o autor resgata a situação dos trens que chegavam apinhados de gente à capital brasileira da loucura, em busca de tratamento psiquiátrico. (p. 28).
Dentre as inúmeras denúncias da realidade da saúde psiquiátrica enfrentada no Brasil nos últimos cem anos, Daniela diz que, a partir dos dados do setor de psiquiatria, em 1981, “a cada duas consultas e meia, uma pessoa era hospitalizada nas Gerais”. E, a todo momento, a jornalista reforça quais eram as verdadeiras condições às quais eram submetidas essas pessoas nas internações. Um dos tratamentos mais comuns era o choque. A força era tamanha, e usada com tanta frequência, que é dito que às vezes a energia elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga. Muitos morriam, outros sofriam fraturas graves.
A fome era inevitável: é dito que, “por dia, na cozinha eram gastos 120kg de arroz e 60kg de feijão para alimentar 4.800 pessoas” (p. 43). Também havia o trabalho: “Registros da instituição apontam que, em 1916, quase metade da receita do hospital foi garantida pelo suor dos pacientes e pela venda dos alimentos que eles plantavam” (p. 65) e, em um complemento, Luiz Felipe Carneiro, neto do administrador do hospital, nascido dentro do hospício, diz que “Não pareciam doentes, mas escravos”.
Na referida edição, trabalhada pela editora Intrínseca, o bombardeio de fotos torna ainda mais dura a realidade e mais difícil a leitura. Não são apenas palavras, documentos, relatos: os rostos dos entrevistados estão ali, a descrição das circunstâncias está explícita em fotos que registraram os homens, mulheres e crianças que viveram tudo aquilo.
Daniela também discorre, em tom de denúncia, a respeito do pouco caso com o qual eram tratados os mortos do hospital e, como se não bastasse, o comércio macabro que se sucedia com as universidades públicas do país. O lucro na venda dos cadáveres fazia com que o hospício deixasse seus pacientes para morrer. “Nas geladas noites da cidade serrana, eram enviados para os pátios, com as vestimentas molhadas, e ali largados para morrer” (p. 79). Daniela ressalta que, em uma década, a venda de cadáveres atingiu quase R$ 600 mil, fora o valor faturado com o comércio de ossos e órgãos.
Além daqueles trinta cadáveres, outros 1.823 corpos foram vendidos pelo Colônia para dezessete faculdades de medicina do país entre 1969 e 1980. A subnutrição, as péssimas condições de higiene e de atendimento provocaram mortes em massa no hospital, onde registros da própria entidade apontam dezesseis falecimentos por dia, em média, no período de maior lotação. A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos. (p. 81).
Marcado por registros difíceis de absorver, uma amostra de tempos tenebrosos, em uma proximidade assustadora, Holocausto Brasileiro também trata de restauração e cura. Como bem dito pela jornalista Eliane Brum em prólogo escrito ao livro, “Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida”.
Livro indispensável àqueles que se consideram brasileiros, àqueles envolvidos com a área da saúde, àqueles que amam o jornalismo. Indispensável, acima de tudo, para aqueles que lutam pela humanidade e acreditam na possibilidade de um futuro melhor.