O título Ela disse é intencionalmente complicado. O livro é um relato das jornalistas norte-americanas Jodi Kantor e Megan Twohey, que escreveram sobre aquelas que decidiram dizer, sobre as que não conseguiram dizer e sobre as nuances de quando, como e por quê. Um clássico instantâneo do jornalismo investigativo. Na obra, as jornalistas discorrem o trabalho de apuração até reportagem do jornal The New York Times, em outubro de 2017, com as denúncias dos assédios do produtor de Hollywood Harvey Weinstein, acusado de abuso e assédio sexual por cerca de 80 mulheres.
Um mix de sentimentos me inundou durante toda a leitura. O sentimento de revolta, de incapacidade e de coragem ao mesmo tempo. Quando uma mulher denuncia assédio e/ou abuso nos sentimos orgulhosas da coragem dela, mas já se perguntou como foi para ela o caminho até a denúncia? É essa perspectiva que Jodi e Megan nos apresentam em Ela disse. Spoiler: precisou de muita coragem para fazer aquela denúncia.
Para quem ama jornalismo a obra é um prato cheio, com detalhes da investigação. Por mais que as histórias ali apresentadas sejam pesadas, ele não é um livro pesado. Mesmo em relatos das vítimas, as jornalistas conseguiram trazer o profissionalismo e uma certa leveza nas palavras. É claro que essas histórias podem ser um gatilho para algumas leitoras que já tenham passado por algo semelhante. Então, cuidado: alerta gatilho.
Entretanto, é admirável e inspirador, como mulher e futura jornalista, a determinação de Jodi e Megan em fazer a reportagem acontecer. Ao longo das entrevistas e busca por novas testemunhas, elas se depararam com muitas dificuldades, principalmente pelo fato de ter que apurar com a máxima discrição para que Weinstein não descobrisse a investigação e, assim, utilizasse de seu poder de influência e dinheiro para acabar com o trabalho.
Por muitos anos, a menção do nome Harvey Weinstein já desmotivava as mulheres com as denúncias e as poucas que tiveram coragem foram silenciadas. E o pior de
tudo, diversos acordos de confidencialidade foram feitos ao longo das décadas com várias mulheres que, em alguns casos, foram incentivadas por seus advogados a simplesmente aceitar o acordo e a indenização e seguir com a vida “normalmente”.
A obra ainda cita uma investigação a respeito de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, que ocorreu antes, e de um juiz da Suprema Corte americana, que ocorreu após as denúncias do NYT. Essas outras duas investigações, apesar de não terem relação direta com a principal contada no livro, são um paralelo que podemos usar como comparativo entre repercussão midiática e como é importante denunciar o abuso o quanto antes.
Outra questão importante que as jornalistas acabam trazendo em sua conclusão é a respeito do movimento #MeToo, uma campanha que se multiplicou entre as atrizes de Hollywood contra a cultura do assédio sexual no principal cenário da indústria do cinema mundial, onde seus abusadores são protegidos pelo poder. O fato é que, se a história não fosse contada, nada mudaria. Problemas que não são vistos, não podem ser enfrentados.
Por isso, a obra evidencia o poder do jornalismo para mudar o mundo. Com uma escrita muito envolvente e impactante, Ela disse é uma obra fundamental para todos os que ainda acreditam que movimentos, como o #MeToo, têm a capacidade de revolucionar. Mas, acima de tudo, é uma empolgante ode à força e ao poder do jornalismo e do feminismo. No nosso mundo jornalístico, a matéria é o fim, o resultado, o produto final.
Foi um incrível trabalho de investigação e jornalismo de Jodi e Megan. Elas deflagraram um movimento global que levou as discussões de assédio a várias esferas, fazendo desmascarar o machismo estrutural que dá sustentação à dominação patriarcal sobre o corpo feminino. A obra é uma verdadeira prova do que é possível fazer quando mulheres se unem e lutam juntas. “Ela disse” é uma leitura necessária e atual.