Nascido em Gonaives, Junel Ilora concede entrevista respondendo sobre sua história e a  comunidade que faz parte.

Junel Ilora, de 32 anos, nasceu em Gonaives, no Haiti. Tradutor Haitiano, chegou em Campo Grande há sete anos e notou que não havia nenhuma comunidade de acolhimento para os imigrantes. Por isso, com ajuda de voluntários, montou a Associação Haitiana na cidade, da qual é presidente. Porém, mesmo com esse tempo de existência da Associação, ela ainda carece de recursos e qualquer tipo de ajuda, sendo um desafio a busca por voluntários para tornar a comunidade acolhedora. 

Reprodução: Comunidade Facebook : Haitianos em Campo Grande – MS – Brasil.

O haitiano deixou o país, por conta da situação crítica causada pelo grande terremoto que atingiu o Haiti em 2010, quando mais de 200 mil pessoas foram mortas e milhares ficaram desabrigadas. Como desfecho, além da destruição de construções e da infraestrutura urbana, o país obteve um elevado índice de pobreza e até hoje passa por problemas oriundos dessa falta de infraestrutura, como desnutrição e epidemia de cólera, apontam dados da Unicef.

Nessa entrevista, por exemplo, ele salienta que escolheu o Brasil por sentir que o país era mais acolhedor. Ele fala dos desafios de organizar e receber seus conterrâneos, principalmente em relação ao mercado de trabalho, demonstrando o desconhecimento das leis de trabalho e o interesse pelo aprendizado das mesmas. Logo, o principal desafio da comunidade hoje é a disponibilidade de cooperação à instituição.

Entrevistadora: A Associação Haitiana foi criada em 2016 em Campo Grande. Na época, você contou com ajuda da Pastoral dos Imigrantes, advogados e voluntários. Quem faz parte dela atualmente?

Junel: Bom, na diretoria nós temos 13 pessoas. Como diretor, presidente e vice, secretário e vice, com um total de 13 pessoas.  O nome da associação é  Associação para a Solidariedade dos Haitianos no Brasil (ASHBRA), as crianças que nasceram aqui futuramente poderão participar da futura eleição da Associação.

Entrevistadora: As pessoas que chegam aqui buscam o que?

Junel: Primeiramente, o imigrante deixa seu país natal por razões políticas ou sociais, como guerras, mas ao chegar aqui, no nosso caso, aqui em Campo Grande, nos organizamos como comunidade de pessoas de mesma nacionalidade para buscar o melhor para todos. No meu caso, sou o mais antigo, estou há sete anos aqui no país. A nossa visão é manter a nossa cultura, organizar nosso povo para buscar empregos, acompanhar na parte de documentação e na saúde de uma forma geral. Também mantemos contato aqui, com a embaixada do Haiti, para facilitar a vida do povo aqui na Capital.

Entrevistadora:  Como é o processo de entrada dos estrangeiros que fazem parte da comunidade?

Junel: Bom, entrando no Brasil, havia duas maneiras de entrada: com o visto, direto para São Paulo ou Campo-Grande, ou pela fronteira, como em Corumbá ou Roraima, que fica no norte do país. E ao chegar aqui na comunidade, nós temos grupos de WhatsApp, algum de nós vai receber essa pessoa e a diretoria irá se sentar com essa pessoa para iniciar a documentação de trabalho e moradia.

Entrevistadora: Quais são os principais projetos?

Junel: Hoje, o principal seria o curso de língua portuguesa.  Seja para trabalhar, para moradia, para estudar.  Além disso, o nosso projeto é manter a nossa cultura, manter a nossa comunidade viva de uma forma geral, para que crianças e aqueles que estão chegando, ao chegar aqui, tenham um espaço disponível com uma comunidade forte e assim, amanhã será melhor para todos.

Entrevistadora: Existe alguma forma de um cidadão oferecer ajuda à associação?

Junel: Ajuda de qualquer maneira é bem-vinda. “Eu vou ajudar com cesta básica”, “Eu vou ajudar na língua portuguesa”, “Eu vou ajudar nas leis do Brasil, como leis trabalhistas”, na saúde, qualquer forma que venha a ajuda é bem-vinda. A porta está aberta, porque nós, como comunidade, não sabemos realmente a lei, a realidade do Brasil, então nós precisamos de ajuda e qualquer forma que ela venha, é bem-vinda.

Entrevistadora:  Por que você escolheu fazer parte da Associação?

Junel: Como eu fui um dos primeiros a chegar em Campo Grande no final de 2014, chegando aqui e vendo que a situação foi se complicando com problemas na documentação, no trabalho, de moradias, a gente se agrupou e começou a criar a Associação e a importância dela hoje é manter a comunidade viva.Assim, uma pessoa que vai chegar ou que já chegou, terá outro acolhimento. Por isso, a Associação está trabalhando para buscar o melhor para todos aqueles que já estão e os que vão chegar batendo em nossa porta, aqui na capital.

Entrevistadora:  Você enxerga o trabalho que faz para a associação como difícil?

Junel: É difícil, sabe? Eu acabei de receber três famílias que vieram para cá e elas estão sem nada. Primeiramente, eles precisarão de moradia, depois trabalho e algumas sacolas de cesta básica e a Associação não tem nada e não tem aonde ir para colocar essas pessoas para viver hoje. Então, precisamos do apoio de alguns voluntários já entre nós ou brasileiros para poder encaixar essas famílias. Daí, partimos na parte da documentação, moradia e trabalho para eles, o que é bem difícil. Trabalhar para a Associação de imigrantes é bem complexo mesmo, e entre nós mesmo temos, não vou dizer problema de religião, mas a pessoa pode chegar aqui e não é católica, então você tem que dar um jeito até que a pessoa desenvolva a sua crença.  Vamos supor que você seja de uma batista e eu não sou, eu sou da Assembleia, então você vai lá e eu vou do outro lado. Assim, cada um aqui vai dar um jeito de crescer junto, trabalhar junto. O trabalho é muito complexo e difícil. Por isso, estamos sempre precisando de apoio e ajuda daqueles que querem e possam nos ajudar.

Entrevistadora: Como foi o seu processo de aprender a língua portuguesa?

Junel: No meu caso, sou formado em Letras e falo espanhol também. Quase 70% dos haitianos que são formados já falam mais de dois ou três idiomas. Ao chegar aqui, já falava espanhol, então isso me ajudou a dominar a língua portuguesa. Mesmo formado, eu fiz um ano de Educação de Jovens e Adultos (EJA) para dominar a língua e hoje, é isso que está me ajudando e facilitando a minha vida para ajudar as demais pessoas que estão chegando.

Entrevistadora: Tem algum familiar que mora com você?

Junel: No meu caso, não. Meu pai e minha mãe estão lá. Minha ex-esposa é do Haiti. Eu cheguei primeiro e depois trouxe ela para cá e nós temos um filho de quatro anos. Aqui temos primos, amigos, mas pais, irmãos e irmãs estão lá no Haiti ainda. A visão é de juntar, buscá-los, mas como está difícil hoje, é longe de se realizar esse sonho.

Entrevistadora: Você acha que esse processo é difícil? Trazê-los ao Brasil?

Junel: Bom, hoje para todos nós imigrantes, depois dessa pandemia, covid e com o dólar muito alto, a passagem do Haiti para cá é muito dinheiro mesmo. Então, como Imigrante, a gente vai demorar muitos anos para poder trazer mãe, irmão ou pai ao Brasil. Mas a visão é morar aqui e permanecer no país.

Entrevistadora: Por que escolheu o Brasil para morar?

Junel: Então, lembrando que o Haiti foi destruído em janeiro de 2010, teve um terremoto que o destruiu. E o Brasil, como um país mãe viu isso e nos ofereceu essa oportunidade de deixar o Haiti para entrar no Brasil com uma vida nova. Por isso, estou aqui hoje.

Entrevistadora: Sentiu-se acolhido quando chegou aqui?

Junel: Sim, hoje estou aqui porque o povo brasileiro me acolheu. Eles todos: aqui no bairro, no trabalho e algumas entidades do estado. Aprendi o que é tereré aqui na Capital.

Entrevistadora: E qual o principal desafio de ser estrangeiro aqui no Brasil?

Junel: O grande desafio é a língua portuguesa, porque o estado funciona, a parte da documentação funciona, mas o acolhimento que eu recebi aqui é muito diferente de outros países que morava antes de vir ao Brasil. Aqui é um país acolhedor, que ajuda e orienta. O segundo desafio é o trabalho. Na saúde, graças a Deus, está funcionando e a documentação, com a Polícia Federal, está funcionando também.

Entrevistadora: E qual você acha que é o motivo de sentir tanta dificuldade de buscar trabalho?

Junel: Como sou estrangeiro, tenho que me adaptar, como já disse, com a língua portuguesa mesmo. Graças a Deus, o povo me ajudou e se até hoje eu não recebesse o apoio da comunidade e dos voluntários, eu deixaria o Brasil, mas felizmente, eu não vou deixar, vou ficar.

Entrevistadora: Já sentiu alguma forma de discriminação no Brasil?

Junel: Pessoalmente, não recebi discriminação. Tenho alguns casos de amigos no trabalho de alguma pessoa que não é chefe deles fazer alguma brincadeira que não deveria. Então, há alguns casos.

Entrevistadora: O que você acha que falta no Brasil?

Junel: Bom, como o mundo todo, todo país tem seus problemas, assim como o Haiti. O Brasil tem tudo para ser uma grande potência. Se vermos o Japão, uma ilha, já é uma grande potência. O Brasil também tem potencial para isso, então vamos lutar para que o Brasil daqui a poucos anos entre na lista de uma potência mundial.

Entrevistadora: Para finalizar: se pudesse mudar alguma coisa no mundo, o que seria?

Junel: Bom, para mim seria o preconceito, ser racista. Quando dou palestras para colégios e demais amigos, sempre falo que ser racista é ser uma pessoa doente e talvez não saiba que está doente. Seja no Haiti ou no Brasil, ninguém poderia pensar: “Eu sou melhor que você” “Eu sou original”, porque essa pessoa não é. Isso não deveria estar entre nós. Se eu pudesse, mudaria isso, buscando paz, porque o mundo precisa de paz e a covid-19 nos mostrou isso. Hoje, a guerra entre Ucrânia e Rússia não precisaria de tudo isso, mas infelizmente o egoísmo, o racismo e a discriminação chegam a quem está sofrendo, consequências.